sábado, 14 de maio de 2011

Um passeio até a farmácia

Após cometer suicídio, desci as escadas do prédio utilizando apenas os cotovelos e os joelhos. Fui até a farmácia mais próxima e perguntei se eles tinham algum remédio.

—Algum remédio? Mas aqui é uma farmácia, qual remédio você quer?
—Qualquer um.
—Qualquer remédio?
—Isso.
—Desculpe, mas nós não temos remédios aqui.
—Nenhum?
—Nenhum.
—Nem uma aspirina?
—Nem uma aspirina.
—Mas aqui não é uma farmácia?
—Sim.
—Então como não há nenhum remédio aqui?

Ele me respondeu entoando uma velha canção medieval que falava sobre os quasares e as constelações distantes, nas fronteiras do universo, e sobre como ele amava a arte de confeccionar cestos de vime.

Ao término da canção, que muito me emocionou, tentei falar sobre um episódio da minha infância que estava até então adormecido em minha memória, sobre quando tentei fugir do berço e acabei caindo de cabeça no chão, esmagando um besouro alegre e uma formiga melancólica. Mas, infelizmente, o atendente da farmácia já havia ingerido todas as aspirinas disponíveis ali, e estava a agonizar no chão. Como os outros presentes tentavam o ajudar, dançando de forma sexualmente provocante e pejorativa, resolvi me retirar da farmácia por motivos higiênicos e regenerativos.

Ao sair pela porta, tropecei na cabeça de alguém que procurava por lentes de contato, o que a fez rir de forma desorganizada e ambiciosa. Ela ria mexendo os dedos, como se estivesse imitando elefantes apáticos se locomovendo, mas logo tive de a abandonar.

Notei que havia uma moça muito bonita e jovem com um míssil enterrado em seu ânus. Ela ficava ligeiramente inclinada para frente, por medo de fazer algum movimento descuidado que o detonasse. Perguntei se queria ajuda e me respondeu que estava bem, apesar de não poder se mover e mal conseguir respirar por causa da dor. Tentei remover o míssil, mas por mais que eu puxasse, nada acontecia; do nada, a moça começou a chorar muito e a se esfacelar na minha frente. Ainda tentei pegar os seus pedaços que caiam no chão, e remontá-la, mas foi em vão, logo ela era um morrinho de areia gordurosa e onomatopaica. Enquanto eu tentava ainda interagir com o morrinho, um homem tentava a todo custo, me cumprimentar. Eu dizia a ele que estava ocupado, mas mesmo assim ele tentava me cumprimentar utilizando os pés, eu dizia "moço, estou muito ocupado, espere um instante", mas ele só gritava e chorava, enquanto estendia seu pé. Quando me irritei, cheguei bem próximo ao seu joelho e gritei:

—SOMOS UMA NAÇÃO DE MANEQUINS E DE FÁBRICAS DE MATERIAL INANIMADO. NÃO SE PODE MAIS CAMINHAR COM IRREVERÊNCIA PELAS RUAS. TEMO PELA MINHA FALTA DE FALSA MODÉSTIA. O QUE SERÁ DAS GERAÇÕES FUTURAS?

Um policial que andava fantasiado de microfone me notou enquanto eu falava com o joelho do homem, e me deu voz de prisão. Ainda tentei me justificar, mas não quis me ouvir, disse que estava muito feliz com o que eu havia dito. Ele sorria.

Caminhamos pela rua, cantando e dançando. Ele me ensinou uma dança muito interessante, na qual nos jogávamos no chão, pelados, e imitávamos o movimento das minhocas, mas de uma forma muito graciosa, como se fôssemos motosserras emblemáticas. Chegando na delegacia, me deu um pontapé nas costas e caí numa sala cheia de outros policiais, que me espancaram por horas e horas, até eu perder a consciência. Acordei com todos eles dormindo à minha volta. Imagino que me espancaram até terem perdido todas as forças.

Entrei na sala seguinte, onde estava sendo realizada uma gincana. Sentei-me e observei. O delegado fazia mímicas e deveríamos tentar adivinhar do que ele falava. Pelo que o sorveteiro ao meu lado disse, a ideia era adivinhar qual crime estava sendo representado pelo delegado, e quem acertasse seria solto. O delegado começou uma nova mímica. Ele alisava os seus testículos e falava números em japonês arcaico. Depois se jogava no chão. E se levantava novamente. Depois de repetir isso várias vezes, pegou seu revólver e o observou; sorriu para ele dizendo que gostava muito de viver dentro de copos de plástico e de fábricas de vassouras. Levantei o meu dedo indicador da mão esquerda e o delegado disse que eu deveria usar o da mão direita, que isso seria mais agradável a todos. Então abaixei o esquerdo e levantei o direito. Ele me concedeu a palavra. Disse que o crime ao qual ele fazia referência era o de dirigir acima da velocidade permitida. Falou que eu estava correto e ficou vermelho de raiva; começou a gritar e a rasgar suas roupas. Logo após isso deu vários tiros em sua barriga, o que fez a sala ficar ligeiramente suja de sangue, tripas, e tinta amarela. O mais curioso foi que, de dentro do buraco em sua barriga, caíram as chaves da porta da delegacia, além de um bilhete de sua mãe, o lembrando de comprar aspargos para o jantar do dia seguinte. Os outros presos me aplaudiram longamente enquanto eu pegava as chaves e me retirava de lá. Um deles inclusive me presenteou com um pedaço de casca de árvore cética envelhecida, que eu deveria enfiar dentro de meu ouvido, caso ficasse muito entediado e ambivalente.

Já no lado de fora, senti saudade daquelas pessoas da delegacia. Não aguentei e comecei a chorar emocionado. Da janela eles me acenaram, também chorosos, e acenei de volta. Ficamos nisso, por alguns instantes, até que um homem encapuzado começou a golpeá-los com um porrete de ferro, os matando instantaneamente.

Voltei até a farmácia. O atendente da farmácia ainda estava estirado no chão, morto, assim como as pessoas que o tentaram ajudar. Então me deitei ao lado deles e esperei.


***


Postado originalmente (numa versão ligeiramente diferente) aqui.
(Repostando esse texto, que o Blogger apagou durante um período de manutenção...)