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Certo dia foi assim. Eu não existia e então passei a existir. Não existe uma explicação muito clara. Do nada, apareci. Mas eu acho que é o normal. As coisas aparecem no mundo e depois desaparecem, sem nenhuma explicação. Eu estou aqui, e depois não estou mais. Deixo de existir e em algum momento volto a existir outra vez.
Do nada, meu pai aparece. Ele diz "Oi" e depois desaparece. Isso quer dizer que num dado momento eu não tenho nem pai, nem nada, e, durante 3 segundos, eu passo a ter pai, que me olha e diz "Oi", para logo depois sumir e as coisas voltarem a ser como antes.
Volta e meia surge alguma outra coisa, como uma árvore ou um poste, mas essas coisas somem logo depois. Até o chão faz isso; passo a maior parte do tempo caindo num espaço branco vazio; diria que é complicado dizer se estou caindo para cima, ou para baixo, uma vez que não existe nada aqui, não dá pra ter muita noção desse tipo de coisa. Volta e meia, quando surge algum objeto, eu penso algo como "Ah, ele está vindo lá de baixo, portanto estou vindo de cima". Mas logo depois disso surge um outro objeto "caindo" numa outra direção, como se estivesse caindo da direita para a esquerda em relação ao objeto anterior, me confundindo novamente. Em algumas raras vezes o chão aparece. Caio nele, mas não me machuco. Geralmente não há nada, é um chão branco, muito limpo aparentemente. Caminho um pouco sobre ele, aproveitando enquanto há chão para se andar. Até que do nada o chão some e passo a cair em alguma direção indefinida outra vez.
Não sinto muita fome, uma vez que não gasto muita energia. Me alimento das comidas que esporadicamente surgem perto de mim: frutas, carnes, ovos, doces.
Sinceramente, volta e meia me pergunto como sei o nome das coisas e suas funções. Desde que me dou por gente estou aqui caindo neste espaço branco, nunca ninguém me ensinou nada, aliás, nunca conversei direito com ninguém, pois as pessoas surgem e desaparecem misteriosamente, não há tempo de criar qualquer tipo de intimidade. Devo ter aprendido a falar (e pensar) com esses breves episódios de interação humana, além de alguns esporádicos livros que vieram parar nas minhas mãos por acaso. Tive a oportunidade de ler algumas gramáticas e dicionários, de forma que pude juntar as coisas todas e começar a formular pensamentos lógicos, pois antes disso apenas pensava em palavras e ideias embaralhadas e nos objetos errantes, até então sem nome, que passavam por mim.
Gostaria de saber como vivem as outras pessoas; o que fazem, o que pensam, será que vivem como eu? Cada uma transitando de forma errante em sua solitária dimensão, isolada das outras pessoas?
Passo a maior parte do tempo pensando em como escapar daqui. Alguém que passou por mim certa vez disse que existem passagens para outras dimensões, deve-se estar atento a elas. Também ouvi histórias de como é viver nessas outras dimensões, das suas cores, cheiros, objetos, leis. Existem algumas dimensões onde o chão é constante, pode-se caminhar sempre, ao invés de ficar caindo no vazio a maior parte do tempo, como no meu caso. Dizem que nessas dimensões é possível construir uma sociedade, algo que nunca pude ver de perto, onde pessoas convivem e juntas podem construir suas vidas e progredir.
Já em outras, as pessoas nascem coladas. Cada pessoa possui uma outra colada nas suas costas, não necessariamente elas se dão bem, deve-se aprender a conviver em harmonia; as duas devem negociar em que lugares vão e que atividades irão realizar, uma vez que as duas terão de participar de qualquer coisa que qualquer uma das duas queira fazer.
Também existem as dimensões saturadas. Na minha, as coisas aparecem e desaparecem, de forma que existem de fato poucos objetos físicos. Nas dimensões saturadas, as coisas aparecem e nunca mais somem, os objetos vão surgindo e se aglomerando, fazendo com que as dimensões se transformem num aglomerado de massa, e apenas alguns seres microscópicos conseguem sobreviver; a tendência nessas dimensões é a extinção da vida por completo.
Me disseram que existem dimensões onde os seres nascem sempre dentro de outros. Alguns conseguiram se adaptar, mas no caso dos seres humanos isso não funciona. Quando um ser humano surge, ele causa a morte de outro. Dessa forma, a população humana dessas dimensões é extremamente reduzida, algo como 3 ou 4 humanos apenas.
Na minha dimensão é difícil dizer a quantidade de habitantes. As coisas são extremamente inconstantes por aqui. Como se pode obter dados estatísticos de um lugar onde a existência das coisas é inconstante? Algo que existe agora pode não existir daqui a cinco minutos, não se pode contar com nada onde vivo.
Estou me aproximando de um portal que atravessa dimensões. Me esforço para aproximar-me dele. Se houvesse chão agora poderia caminhar até lá; ficar nadando no ar não está adiantando de muita coisa. Vejo que atrás de mim uma pessoa se aproxima em alta velocidade. Nos chocamos e sou lançado para bem longe do portal, enquanto ele se aproxima, mas para seu azar, o portal some diante de seu olhos; ele fica realmente triste e desesperado. Para a minha surpresa, logo depois disso a pessoa desaparece.
Me pergunto para onde vamos quando não estamos aqui. É um pouco como se estivéssemos dormindo ou desmaiados; não consigo me lembrar do que acontece quando sumo. Será que apareço em outra dimensão? É bem possível, pois li num livro que em algumas dimensões não existe a memória, ou pelo menos ela é muito curta, como a lembrança de um sonho que esquecemos logo após o despertar. De onde esses livros vieram? Não seria possível fabricar um livro por aqui, certamente vieram de outro lugar. Provavelmente esses livros desapareceram de outras dimensões e aqui ressurgiram - a não ser que alguém tenha cruzado um dos portais segurando um desses livros, o que é muito improvável, uma vez que cruzando o portal, aparecemos nus na outra dimensão, foi o que li certa vez. O problema é que não conheço ninguém que tenha cruzado um portal. Nem ninguém que conhecesse uma outra pessoa que já tenha feito isso. Sendo assim, é possível que a história dos portais seja apenas uma lenda, que eles não sirvam pra nada mesmo, e, quem sabe, nem existam outras dimensões; talvez as pessoas necessitem de crenças injustificadas como essa para se manterem sãs...
Os anos passam, nada me acontece. E nada posso fazer para que algo aconteça. Penso qual será o meu sentido de existir, uma vez que tudo que faço é apenas vagar nesse espaço vazio. Já estou quase morto; eternamente solto.
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Vejam no Desce Mais Um:
http://descemaisum.blogspot.com/2010/05/fascinacao.html
A história de um incrível relato
E pra quem ainda não viu, minha entrevista pro blog Ensaios em Foco:
http://ensaiosemfoco.blogspot.com/2010/05/top-blog-em-foco-entrevista-com-rafael.html