Terbonese era uma linda floresta, de árvores muito altas e esquilos saltitantes. No meio da mata, mal se podia ver a luz do sol, que era tampada pela folhagem densa e escura. Os animais viviam em plena harmonia, uma vez que esta era uma mata virgem. Ficava muito distante de qualquer centro urbano, e não existia em nenhum mapa. Isso tornava a região de Terbonese muito especial.
De certa forma ela não existia. Como ninguém sabia de sua existência, era como se ela não existisse, ora bolas.
Mas, enfim. Esqueçamos a linda floresta de Terbonese. Essa história não é sobre ela.
Bordonésio era um boxeador. Desde a mais tenra idade dizia que queria ser boxeador profissional. Os pais estranhavam, nunca haviam visto um menino de 1 ano e meio ficar socando a parede de seu quarto até tirar sangue dos punhos. Na escola era uma peste. Arranjava briga com todos os coleguinhas. Quando ficou mais velho abandonou os estudos para treinar. Mas acabou sendo expulso da academia, pois atacou um de seus colegas por trás, na frente de seu treinador. Sua mania de brigar foi piorando até que se tornou mendigo. Mendigava e batia nas pessoas pela rua. Principalmente nas velhinhas. Mas é claro! Elas nunca davam esmola.
Mas, enfim, Bordonésio não importa. Essa não é uma história sobre ele.
Havia uma fábrica de lâmpadas na região dos alpes de Heurgoistein. Era uma fabrica muito antiga, alguns diziam que datava do século IV A.C., apesar de ainda não existirem lâmpadas nessa época. Essa fábrica foi muito importante ao longo da história. Muitos nobres, reis, ditadores e terroristas compraram lâmpadas fabricadas lá. Além disso, seus cientistas lamparínicos contribuíram muito com a tecnologia lampadal que temos hoje. Devemos muito a eles. Devíamos rezar todos os dias agradecendo às suas noite em claro, tentando elevar o nível de iluminação da humanidade. Bom, eu faço isso. Se você não faz devia passar o resto dos seus dias no escuro, pra ver o que é bom.
Mas isso é de importância ínfima. Essa história não é sobre a fábrica de Heurgoistein.
Certo dia estava tomando suco de laranja. Me deliciava com ele. Fazia com que minhas papilas gustativas aproveitassem ao máximo cada gota desse sagrado néctar. A cada gole meus olhos se enchiam d'água, por causa da emoção do beber. Eu ficava ali. Horas. Apenas tomando suco de laranja. O que pode ser melhor do isso? Sexo? Talvez. Mas sexo não tem gosto de suco de laranja. É uma pena. Quando ia tomar o último e melhor gole do meu vigésimo sexto copo de suco de laranja do dia 3 de Abril de 2014, minha cozinheira me interrompeu:
"Tem um homem na porta. Ele que falar com você. Parece irritado"
Estranhei. Nunca convido ninguém para minha casa na Hora de Degustação de Suco de Laranja. Tomei o último gole do copo e levantei da Cama Degustativa.
Caminhei pelos corredores, ou melhor, fui caminhado pela casa. Havia instalado o novo sistema de chão rolante, para não ter que ficar caminhando, gastando minhas juntas. Chegando na porta deparei-me com um homem feio, sujo e fétido que ficava pulando de um lado para o outro como se estivesse num ringue de box.
-Boa tarde, poderia me arranjar uma esmola ou um pouco de comida?
-Por que logo eu? Essa vizinhança é enorme.
-Tens uma bela casa.
-A do vizinho é maior.
-(Olha) É, tem razão. Mas a sua é mais chique que a dele. Logo imaginei que tivesse mais grana.
-O que o fez pensar isso?
-Bom, é simples. Não é todo mundo que tem luminárias germânicas no jardim. Muitos menos com lâmpadas originais da grife de Heurgoistein.
-Hum, vejo que tens alguma cultura. Não é qualquer um que reconhece uma delas. Como te chamas?
-Bordonésio.
-Oh! Mas que lindo nome. Meu filho também se chama Bordonésio. Queira entrar, por favor.
Bordonésio se banhou e comeu. Depois conversamos sobre variedades, ele se mostrou um homem muito culto.
-Como um mendigo pode ser tão culto?
-Não sou um mendigo qualquer. Por ser um mendigo altamente anti-social, resolvi caminhar intermitentemente em linha reta, saindo aqui da cidade. Qual não foi a minha surpresa, depois de dois meses caminhando sem rumo, me deparo com a floresta de Terbonese.
-O que é isso?
-É uma floresta virgem. Na verdade, ela não é virgem. É que quem entra dentro dela não pode mais sair. Portanto, as únicas pessoas que sabem de sua existência são as que vivem por lá. É muito densa a sua mata. Muito facilmente nos perdemos lá dentro. A maioria dos que, por acaso, vão parar lá, acabam vivendo pra sempre no meio das plantas e dos esquilos saltitantes.
-Interessante. E como conseguiu sair?
-Não consegui. Ainda estou lá. Não estou aqui na verdade, sou apenas uma ilusão, como um sonho seu. Meu desejo de sair de lá é tão grande que me personifico fora de meu corpo. Geralmente, mas não sempre, apareço muito longe da floresta. Que é o seu caso também, né?
-É, verdade. Mas não conte pra ninguém sobre isso! E como descobriu que eu também estou em Terbonese?
-Fácil. Terbonese fica nos fundos de sua casa. Idiota.
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Mas esqueçamos esse encontro ridículo. Essa história não é sobre esse encontro.
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Essa história é sobre uma mulher que foi ao supermercado fazer as compras e depois voltou.
Fim.
-Mas para onde ela voltou?
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NOTA EXPLICATIVA (à quem interessar)
Como muitas pessoas estão dizendo que não compreendem meus textos, achei que deveria esclarecer alguns pontos.
Gosto de escrever textos com o sentido em aberto. Que não tenham uma interpretação única e imediata. Muitas vezes, eu mesmo formulo uma interpretação do texto, mas esta não será a "versão" certa. Acho interessante quando o leitor vem com uma visão totalmente diferente da minha. Não estou dizendo que "sempre" formulo um interpretação, pois algumas vezes o que escrevo não quer dizer muita coisa mesmo, como em "Ela voltou para casa, ora bolas", e "Eu quero verde", ou tem sentidos possíveis de mais, a ponto de não me prender em nenhum deles, como no caso de "O Sol é o Sol". Isso, claro, também se aplica aos meus poemas.
Por exemplo, no meu último texto, "Eternamente Seu", a leitora Bruna F. disse entender que os dois personagens da história eram almas gêmeas, e que seus destinos era estarem juntos, sejam como marido e mulher, ou mãe e filho. Isso não era a minha interpretação inicial, embora, relendo o texto, pude notar que isso estava de certa forma contido na história. Já a leitora Hosana Lemos achou que o filho parido no final da história não era Horus, e este, que estaria em "algum outro lugar", realmente encontra e fala com sua mãe, dando assim um sentido bem interessante e diferente do que havia imaginado para o final da história.
Para quem quiser saber, a minha ideia nessa história é a seguinte: Horus perdeu a mãe muito cedo, e logo antes de morrer ela lhe diz que estarão juntos novamente, algum dia. Assim, acabou se casando com uma mulher muito parecida com sua mãe, tanto fisicamente, quanto emocionalmente, Clonérie. Ele consegue manter sua vida feliz e em equilíbrio dessa maneira. Até que certo dia, sua mãe o chama num sonho. Nesse sonho ele vê a mãe, e ao mesmo tempo sente a presença da esposa, o que quer dizer que ele está "misturando" as duas pessoas em apenas uma. A partir de então, sua vida entra em desequilíbrio. Ele passa a desejar a presença de sua mãe e ao mesmo tempo a enxerga em sua esposa. Nesse ponto do texto há um acontecimento, digamos, metafísico. Clonérie engravida de seu marido. Quero dizer, ela engravida com ele dentro de seu ventre, de forma que ela agora se torna a mãe de Horus. O que nada mais é do que a realização do que acontecia na cabeça de Horus, onde sua esposa e sua mãe ocupavam o mesmo lugar, o mesmo "posto", por falta de um termo melhor. Na verdade, no final do texto, Clonérie se torna apenas mãe de Horus, por ser algo mais forte, um laço mais forte que o de esposa. No fundo, isso era o que ele realmente queria, reencontrar sua mãe. E de certa forma foi o que aconteceu. Era isso que Horus era, "eternamente" de sua mãe. Após ser parido, Horus passa a ter sua vida em equilíbrio novamente.
Freud dizia que os homens querem fazer sexo com suas mães e assassinar seus pais, isso me influenciou também na escrita do texto. E gostaria de deixar claro que minha intenção não era fazer um conto de terror, como chegaram a me dizer. Horus não entrou fisicamente no ventre de Clonérie, e sim, figurativamente. Como num sonho. Poderia dizer que esse é um conto, de certa forma, onírico, pois seus acontecimentos não são justificados fisicamente, não são possíveis no mundo real.
Ouvi e li, algumas outras interpretações. Nenhuma delas está certa ou errada, são apenas pontos de vista diferentes, diria.